sexta-feira, junho 29, 2007

Dos vícios e das virtudes

Acabei de assistir uma palestra, feita por um médico que já trabalhou em CTI e hoje é coordenador da área de saúde ocupacional de uma grande empresa, sobre o Combate às Drogas. Os que me conhecem – e muitos dividem comigo o mesmo sentimento – sabem que sou arredio quanto a discussões abertas sobre o tópico, uma vez que minhas opiniões divergem do “senso-comum” (ê termozinho complexo) por uma série de motivos. E como o assunto é tabu, até mesmo expô-lo aqui pode ser arriscado. Todavia, ainda me encontro “entorpecido” por tudo que foi dito na palestra, e motivado por esse “barato” resolvi discutir apenas alguns pontos desse delicado tema.


Basicamente, gostaria de começar reproduzindo a definição de vício dada pelo palestrante:


“Inclinação para o mal. Prática irresistível de mau hábito, conduta ou costume censurável ou condenável”.


Pesado, não? Mas se formos buscar lá em Aristóteles a noção de vício, embora também visto de forma negativa, o entenderemos tanto como um derivado do excesso, como da falta. E isto porque, em Aristóteles, a virtude (tema caro ao filósofo) está no meio – não no meio aritmético, mas na justa medida das coisas, ou seja, no vértice de eminência.


Para melhor entendermos esta justa medida, podemos recorrer ao quadro resumido de “vícios por deficiência”, “vícios por excesso” e a “virtude” correspondente, que está situada entre ambos. Este quadro, que reproduzo abaixo, está nos textos da Ética a Nicômaco:



Vício por deficiência ...........Virtude ............Vício por excesso

Covardia ...............................Coragem ........................Temeridade
Insensibilidade .....................Temperança ..................Libertinagem
Avareza................................Liberalidade ....................Esbanjamento
Vileza .................................Magnificência ....................Vulgaridade
Modéstia ..............................Respeito Próprio .............Vaidade
Moleza ..................................Prudência ........................Ambição
Indiferença ............................Gentileza.........................Irascibilidade
Descrédito Próprio .................Veracidade ....................Orgulho
Rusticidade ...........................Agudeza de Espírito ........Zombaria
Enfado ...............................Amizade .......................Condescendência
Desavergonhado ..................Modéstia ..........................Timidez
Malevolência ........................Justa Indignação ...............Inveja



Em Aristóteles, as virtudes não são hábitos do intelecto (como queriam Sócrates e Platão), mas da vontade. Para Aristóteles não existem virtudes inatas, mas todas se adquirem pela repetição dos atos que, para gerarem as virtudes, não devem desviar-se nem por falta, nem por excesso, pois que a virtude consiste na tal justa medida, longe dos dois extremos.


“A virtude é portanto uma disposição adquirida voluntária, que consiste, em relação a nós, na medida, definida pela razão em conformidade com a conduta de um homem ponderado. Ela ocupa a média entre duas extremidades lastimáveis, uma por excesso, a outra por falta. Digamos ainda o seguinte: enquanto, nas paixões e nas ações, o erro consiste ora em manter-se aquém, ora em ir além do que é conveniente, a virtude encontra e adota uma justa medida. Por isso, embora a virtude, segundo sua essência e segundo a razão que fixa sua natureza, consista numa média, em relação ao bem e à perfeição ela se situa no ponto mais elevado”. (Ética a Nicômaco, II, 6)


Agora vamos retornar dessa viagem milenar para o nosso tempo. O estilo de vida que nos é vendido por todo o sistema econômico que vivemos, por toda a racionalização da vida a qual temos sido submetidos há alguns séculos, nos leva irremediavelmente a uma busca pelo excesso, em diversas esferas. Os fabricantes de produtos, seus vendedores, os canais de mídia e publicidade, todos querem que nos comportemos como legítimos consumidores. Exemplo tosco, mas que serve: se você começar a ficar bêbado e tiver que dirigir, você é aconselhado a parar de beber ou a enfiar o pé na jaca mesmo e voltar de táxi?


Aí, indo contra toda essa corrente, autoridades defendem o fim do uso das drogas, o combate às drogas (título da palestra que assisti, lembram?). Os mais conservadores e/ou ignorantes do tema ainda responsabilizam os usuários pelo problema do tráfico de drogas, uma vez que dão dinheiro para os traficantes.


Ora, a proibição das drogas é coisa recente na história do homem sobre a Terra. O uso de drogas, em rituais ou mesmo fora deles, data de mais de 10.000 anos. E todos os trilhões de dólares que o governo americano gastou até agora no combate às drogas não fez com que o uso de entorpecentes acabasse. E é claro que nunca vai acabar. Além do mais, acredito que governos não podem invadir o espaço privado do cidadão e arbitrar sobre o que ele pode ou não fazer nos seus domínios pessoais, sem que haja conseqüências a terceiros. Este é, talvez, um dos piores legados de alguns políticos americanos para a política mundial de combate às drogas: colocar a repressão mil léguas à frente da prevenção, do tratamento médico e do controle do uso abusivo - afinal, se a virtude está no meio, não é o uso que se deve combater, e sim o abuso.


O tráfico só existe porque foi politicamente decidido que certas drogas são legais e outras, ilegais. Proíbam cigarros e bebidas alcoólicas e verão um novo cartel nascer debaixo de suas narinas – como foi com Al Capone na Chicago dos anos 20, quando o número de bares onde ouvia-se o jazz (que era reduzido na época da legalidade) pulou para mais de 300 estabelecimentos clandestinos na época da proibição.



Às vezes eu me bolo com a estupidez humana pra certos assuntos.









* A lição aristotélica eu aprendi através de uma história que envolve a filha de uma grande amiga, Lady Gahiva. Antônia, de 8 anos, voltou de uma festinha com a barriga doendo de tanto tomar refrigerante, no que foi prontamente advertida pela mãe:


- tá vendo só? O que é foi que Aristóteles disse?

- A virtude está no meio, mamãe.
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terça-feira, junho 26, 2007

Playbárbaros



É foda. “Ni qui” dependesse de mim, esse blog seria só sobre livros, músicas, filmes, algumas discussões intelectualóides e quiçá uma ou outra viagem existencial. Mas, como dizia o poeta Allen Ginsberg (sobre quem já falei aqui), o mundo é uma montanha de merda e, se queremos movê-la, é preciso que lhe metamos a mão. E a gente não pode mesmo ficar indiferente às cagadas que neguinho faz por aí.


Essa história da doméstica estampada nos jornais de ontem é troço de deixar qualquer um muito, mas muito puto da vida. Suponho que todo mundo saiba do que estou falando: cinco playboys, cinco canalhas, cinco jovens covardes moradores de condomínios de luxo na Barra (cada vez menos da Tijuca, como diz o amigo Edu) espancaram, lá mesmo, a empregada doméstica Sirlei Dias Carvalho Pinto, de 32 anos, na madrugada desse último sábado – e ainda lhe roubaram um celular e 47 reais! Vejam o drama do depoimento da vítima:


"Eu estava olhando na direção que os ônibus vêm quando eles chegaram me xingando. Depois de pegar a minha bolsa, eles começaram a me bater. Levei muitos pontapés e chutes no rosto. Coloquei o braço na frente, para me proteger e eles passaram a me dar socos e cotevaladas na cabeça".


Tá ruim? Pois piora: o inspetor de plantão informou aos jornais que Felippe, que é estudante de direito, teria dito que cometeu a agressão porque achou que tratava-se de uma prostituta.


Bom, então está explicado. Solta o preso, delegado! Ele achou que era uma prostituta, ora bolas! Os marginaiszinhos de Brasília também se defenderam alegando que confundiram o índio Galdino com um mendigo, e por isso o queimaram vivo. E hoje estão soltos.


Por sorte, um taxista viu a cena deprimente na Barra e anotou a placa do carro. Com o número, a polícia conseguiu localizar o dono do carro e prendeu os brutos. Felippe Macedo Nery Neto, de 20 anos, Leonardo de Andrade, de 20 anos, Júlio Junqueira, de 21, Rodrigo Baçalo (na foto ao lado), de 20 anos, e Rubens Arruda, de 19, dividem uma cela na 16ª DP e serão levados para a Polinter. Felippe, que mora na cobertura de luxuoso prédio na Barra, mandou essa pro delegado: “Vamos ver se isso vai ficar assim, minha família não é qualquer uma”.


Infelizmente, Felippe está provavelmente certo. Sou descrente com a justiça desse país e não alimento a ilusão de vê-los presos por muito tempo. Mas bem que gostaria que dividissem cela, lá na Polinter, com outros presos que tivessem uma quedinha por garotos esbeltos e de pele bem cuidada. E no dia seguinte, quando o delegado os encontrasse arregaçados, sem poder sentar, e perguntasse o motivo daquela barbaridade, os demais presos diriam:



Foi mal, chefia, achamos que eram bonecas infláveis.






segunda-feira, junho 25, 2007

5000 vítimas "do asfalto"

Na capa do JB de sexta-feira, a manchete era: “Cinco mil na mira de fuzis em Copacabana”. A matéria, assinada por Breno Costa, refere-se aos “cerca de cinco mil moradores dos arredores dos morros Pavão-Pavãozinho, Ladeira dos Tabajaras e Cantagalo, em Copacabana e Ipanema”, que estariam “na linha de tiro, em caso de eventuais confrontos entre policiais e traficantes nessas comunidades”. O jornalista ainda tem a cara de pau de admitir: “A conta feita pelo JB não incluiu a população das favelas, apenas a do asfalto” (grifo meu).



Não tenho os números, até porque esse tipo de censo é pouco confiável e depende da instituição que realiza; entretanto, não há dúvidas de que as três comunidades somam muito mais que os cinco mil moradores citados. Mas os milhares de moradores que não moram “próximo às favelas”, mas sim nas favelas, não parecem estar no cerne das preocupações do jornalista ou de seus superiores. Aliás, francamente, quando é que veículos de comunicação como este e outros de maior grandeza realmente se importaram com os que não são “do asfalto”?


Na minha avaliação, a matéria tem sua razão de ser por dois motivos: 1) as favelas estão localizadas em algumas das áreas mais nobres da cidade; 2) segundo o próprio texto, “o alcance letal de um tiro de fuzil é de, no mínimo, 1,5 km, segundo especialistas em armamento”.


Alguém guarda a ilusão de que esta notícia existiria caso essas favelas estivessem localizadas na baixada, ou se as armas dos traficantes alcançassem apenas 50 metros de distância? O problema, para o jornal, é o perigo ao qual estão expostos os moradores “do asfalto”, cujos “apartamentos estão de frente para o morro”. Daí que moradora fulana de tal “até agora não teve problemas com tiroteio, mas sente receio com a proximidade da favela”. E, mesmo quando a opinião do entrevistador não reflete a idéia que eles querem passar, o texto é construído de forma tendenciosa: “A aposentada (...), moradora de um prédio na rua Sá Ferreira, diz viver sem medo, apesar da proximidade de sua sala com o morro” (grifo meu). A conjunção denota o mesmo viés preconceituoso e acusatório presente em frases do tipo “ele é pobre mas honesto”.


O fato de que os grandes veículos de comunicação – e aproveito pra colocar também a maioria dos dirigentes do país nesse balaio de gatos – só se preocupam com os interesses das classes economicamente superiores, em detrimento da segurança e da garantia dos direitos dos menos afortunados, não representa pra mim uma novidade. O que me surpreende é que o façam de maneira tão leviana e descarada.





Fechando, aproveito o ensejo proporcionado por essa reportagem pífia para reproduzir os versos de um samba escrito há quase 20 anos pelo grande letrista Paulo César Pinheiro, e posteriormente gravado pelo percussionista Wilson das Neves.






O dia em que o morro descer e não for carnaval



O dia em que o morro descer e não for carnaval
Ninguém vai ficar pra assistir o desfile final
Na entrada, a rajada de fogos,
para quem nunca viu,
Vai ser de escopeta, metralhadora,
granada e fuzil!
(É a guerra civil…)



O dia em que o morro descer e não for carnaval
Não vai nem dar tempo de ter o ensaio geral
E cada ala da escola será uma quadrilha
A evolução vai ser de guerrilha
Que a alegoria é um tremendo arsenal
O tema do enredo vai ser a cidade partida
No dia em que o couro comer na avenida
Se o morro descer e não for carnaval.



O povo virá de cortiço, alagado e favela
Mostrando a miséria sobre a passarela
Sem a fantasia que sai no jornal.
Vai ser uma única escola, uma só bateria
Quem vai ser jurado? Ninguém gostaria
Que desfile assim, não vai ter nada igual.



Não tem órgão oficial, nem governo, nem liga
Nem autoridade que compre essa briga
Ninguém sabe a força desse pessoal
Melhor é o poder devolver pra esse povo a alegria
Senão todo o mundo vai sambar no dia
Em que o morro descer e não for carnaval.

sexta-feira, junho 22, 2007

Historietas (#1)


Corre à boca pequena, nos corredores de famosa emissora de TV, uma história curiosa envolvendo também famoso diretor – para preservar sua idoneidade, vamos aqui chamá-lo de Lobo Maia.


Pois dizem que tal diretor encontrava-se dentro do elevador da emissora, a sós com o ascensorista, quando entra no mesmo cubículo outro diretor, acompanhado de um jovem e atlético rapaz. Após o cumprimento entre os dois colegas de trabalho, o diretor olha de soslaio para o jovem que o acompanha e dirige-se a Lobo Maia, dizendo:


- Lobo, este aqui é Marcos, meu sobrinho.


Ao que Lobo Maia, velho de guerra, retruca:


- Sim, conheço, já foi meu sobrinho também.





* * *





Notícia do Globo dessa semana: “Estado de saúde de ACM preocupa”.


E a pergunta que não quer calar:


Preocupa quem?



Desconfiando da resposta, quiçá da própria pergunta, os responsáveis pela versão on-line d’O Globo não disponibilizaram a janelinha para comentários dos leitores.





* * *




...E enquanto isso, nos principais aeroportos do país...




quarta-feira, junho 20, 2007

Sobre Visconde de Mauá

Araucária, árvore típica da região de Mauá




Pra quem curte o frio das montanhas e troca, num piscar de olhos, a água salgada do mar e a areia da praia por um belo rio com vegetação densa às margens, junho é o mês ideal pra subir alguma serra. E é na serra das Agulhas Negras, bem na divisa entre Rio e Minas, que está localizado o distrito de Visconde de Mauá, lugar para onde viajo todos os anos desde 1996 e onde estive (talvez pela vigésima vez) nesse último fim de semana, acompanhado de minha bonita e sua infalível Pantera, uma parati 1997 que não medra diante de qualquer desafio que seja.


Há que se fazer uma correção aqui: não é para Mauá, na verdade, que costumo ir, mas sim para Maromba e Maringá que, diferentemente de Visconde de Mauá, distrito de Resende, pertencem ao município de Itatiaia. Maromba já foi o principal reduto de artesãos, hippies e demais bichos-grilos que, em meio à fumaça de fogueiras e ervas relaxantes, dedilhavam nos seus violões harmonias de Raulzito, The Doors e demais expoentes do roquenrol maluco beleza. Entretanto, a invasão de boyszinhos com seus carros dotados de alto-falantes estratosféricos – que via de regra são diametralmente opostos à qualidade do gosto musical de seus donos – expulsou os convivas do local, transformando o pequeno centro de Maromba numa verdadeira cidade-fantasma, como vocês podem conferir na foto abaixo, tirada, acreditem, às dez da noite de sexta-feira.






Sem o que fazer em Maromba, a opção é ir para Maringá, que fica dividida entre Rio de Janeiro e Minas, dependendo em qual margem do rio Preto (que divide os dois estados) você está. E foi justamente no lado mineiro que encontrei uma cachaçaria chamada Uai, Tchê!, que pertence, como o nome indica, a uma gaúcha e a um mineiro, o Rodrigo, dono também de vasto conhecimento sobre a branquinha e sobre a história da região. Foi ele quem apresentou-nos a cachaça de Anísio Santiago, um verdadeiro divisor de águas na história da bebida, que transformou a região de Salinas em uma referência mundial de produção de cachaça artesanal de qualidade. Não é à toa que uma única garrafa da Anísio Santiago-Havana, produzida e embalada desde 1943 em casco escuro como cerveja e com um rótulo bem simples, é vendida por Rodrigo a 280 reais (fotos abaixo).











Definitivamente – e isso é um sinal de que chego perto dos trinta – esta viagem foi bem diferente das outras, menos focada no “agito jovem” e mais voltada para jantares acompanhados de bons vinhos. E quando eu disse pro Severino, dono da pizzaria Girassol, “Ah, você não aceita cartão? É que eu tô sem dinheiro...”, sabe qual foi a resposta? “Faz mal não, anota aí o número da minha conta e quando chegar no Rio você deposita!”. É mole?









Valores como confiança e solidariedade, latentes em algumas cidades pequenas e praticamente ausentes das ditas “áreas nobres” das grandes metrópoles, também se fazem presentes na história de Rosinha, uma mulinha de 22 anos que vive solta na vila de Maringá, transitando livremente em meio a bares, restaurantes e lojinhas. Quando perguntei a Rodrigo, da cachaçaria, quem era o dono da simpática mula, ouvi de resposta: “Ah, ela é do povo. Cada um cuida um pouco”.










Pra encerrar, e correndo o risco de tornar esta postagem ainda mais similar a uma matéria de revista de viagens, algumas fotos dos maiores patrimônios da região: o poção e as cachoeiras.






















p.s. – no início do texto, eu disse que a Pantera era infalível. Mas falhou na volta. Coisas da idade. Nada, entretanto, que fosse grande problema para minha bonita, ás da mecânica que, tal qual o lendário McGyver, sacou o canivete que carrega no porta-luvas (vejam como é prevenida) e pôs-se a resolver nosso problema, para enfim podermos voltar com segurança à esta cidade maravilhosa e por São Sebastião abençoada.



quarta-feira, junho 13, 2007

Sobre os palavrões

Alguém aí já reparou como a maioria das gírias, expressões e palavrões que utilizamos reproduz uma lógica machista e homofóbica de dominação? Michel Misse já. O sociólogo e professor do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ – local onde tive a oportunidade de assistir suas aulas sobre crime e violência urbana – publicou, há quase trinta anos, um livro chamado “O estigma do passivo sexual” (1979), onde desmascara a estigmatização de mulheres e homossexuais “passivos” que permeia várias gírias e expressões de uso cotidiano da língua portuguesa.



Pra usar um eufemismo, é “engraçado” perceber que, mesmo após a emancipação feminina, a revolução sexual e a consolidação de São Paulo como a capital gay do Brasil, a maior parte dos palavrões e gírias que Misse analisou continuam a ser amplamente usadas nos dias de hoje.




Tomemos, primeiramente, o exemplo mais básico: a palavra “homem”, quando usada em gíria, pode significar policial, aquele que domina e tem o poder. E se falta coragem, força ou disposição pra um menino fazer alguma coisa que os outros meninos fazem? É chamado de mulherzinha ou, em idade mais avançada, de viadinho.



E quando a polícia bate na população? Está “metendo o pau”, ou “descendo o cacete”. O órgão sexual masculino, aliás, quando não está associado a força e dominação, é invariavelmente ligado a atributos positivos – pois se algo é bom, é “do caralho” (o adjetivo “foda”, originalmente usado como sinônimo de coisa boa, hoje possui conotação dúbia, dependendo do contexto).



Já os órgãos ligados à passividade, ou seja, o cu e a buceta (pra usar português claro), estão sempre conectados a atributos pejorativos. Um cara idiota é um “babaca” (um dos nomes da vagina); um sujeito pobre ou miserável é um “coitado” (aquele que sofre o coito); para xingar alguém, mandamos “tomar no cu”; se a situação está ruim, é porque “fudeu” ou “deu merda” e assim por diante.



Existe, inclusive, um e-mail (desses que circula pela internê) que revela como a mesma palavra, dependendo do gênero, pode ter significados diferentes – mas sempre pejorativos no caso feminino.



Vejam como procede:


Cão....................... melhor amigo do homem
Cadela....................puta

Vagabundo.............homem que não trabalha
Vagabunda.............puta

Touro.....................homem forte
Vaca......................puta

Pistoleiro................homem que mata pessoas
Pistoleira................puta

Aventureiro.............homem que se arrisca, viajante, desbravador
Aventureira.............puta

Homem da vida..... pessoa com sabedoria
Mulher da vida...... puta

Garoto de rua........ menino que vive na rua
Garota de rua.........puta

O galinha................aquele que traça todas
A galinha ................puta

Tiozinho................. irmão mais novo do pai
Tiazinha.................. puta

Feiticeiro................ conhecedor de alquimias
Feiticeira................ puta

Puto........................ nervoso, irritado, bravo
Puta........................ puta.







Como vocês podem ver, os estigmas e preconceitos estão aí a dar com pau. É uma merda admitir que eu, como você, fico puto de perceber que muitos desses palavrões são introjetados sem que a gente se dê conta. E o que é pior, sem nem um KYzinho.




Bom, isso era o que eu tinha pra dizer. Quem quiser dar sua opinião, pode dar à vontade. Só não venha com essa história de politicamente correto, que isso é coisa de viado!




*





O livro “O estigma do passivo sexual” foi relançado pela Bookmarks em 2005. O prefácio escrito por Misse em 1978, bem como a introdução escrita por Peter Fry, podem ser lidos aqui.

segunda-feira, junho 11, 2007

Sobre desenhos animados


Os desenhos animados norte-americanos sempre foram uma arena perfeita para a representação de alguns estereótipos difundidos naquelas terras. Tome-se o caso do Pepe Le Pew: personagem criado em 1930, trata-se de um gambá francês que passa todo o desenho perseguindo uma gatinha (Penelope Pussycat) que, por causa de uma tinta branca em seu dorso, assemelha-se a uma possível companheira de Pepe. A gatinha, é claro, foge apavoradamente do francês, que possui um cheiro insuportável – característica típica dos franceses, conforme mostra o desenho.



Outro caso típico é o de Ligeirinho (ou Speedy Gonzales), um rato mexicano veloz e ensaboado que vive fugindo às garras do gato – tal como os mexicanos vivem fugindo dos agentes de imigração estadunidenses, conforme nos faz crer o desenho.


Até mesmo os brasileiros já foram esteriotipados pelas ágeis canetas dos desenhistas norte-americanos, através do malandrão e ocioso Zé Carioca. Isso sem falar das menções a sexo e drogas, como na homessexualidade de Betty Boo e da dupla Batman e Robin, na transexualidade de Pernalonga (sempre vestido de mulher), na larica interminável que ataca os maconheiros Scooby Doo e Salsicha, nos cogumelos alucinógenos que fazem Gargamel ver smurfs na floresta e diversos outros exemplos. Muitos desses desenhos, hoje, são considerados politicamente incorretos, e alguns até deixaram de ser transmitidos pelos canais especializados – como pode-se conferir aqui.


Mas há um exemplo de manipulação maior, muito maior, que é simplesmente uma representação da guerra fria – sob a ótica norte-americana, claro – no famoso desenho Thundercats, dos anos 80. Vejam como é precisa a representação à qual me refiro:


Lion, defensor do bem, que com sua espada possui visão além do alcance, ostenta as cores da bandeira americana – o azul e o branco na roupa, e o vermelho nos seus cabelos de fogo. Já Mun-ra, símbolo máximo dos antigos espíritos do mal, é uma múmia que veste uma capa vermelha, a cor dos comunistas comedores de criancinhas.


Entretanto, a batalha entre as forças do bem e do mal não ocorre na terra de Lion e tampouco na de Mun-ra, mas em um planetinha chamado – vejam que descaramento! – Terceiro Mundo (Coréia? Vietnam?).



Agora reparem o profundo ideologismo da trama: os verdadeiros habitantes do Terceiro Mundo são os Roberbills, ursinhos frágeis e simpáticos que, impotentes quanto à investida de Mun-ra, Escamoso, Chacal e outras figuras repugnantes, precisam da ajuda dos sagazes Lion, Panthron, Cheetara, Tygra, até mesmo de Wilikat e Wilikit, para que possam desfrutar da paz capitalista em seu terceiro mundinho.



É tão, mas tão ideológico, que faz os politicamente incorretos charutos na boca do Patolino parecerem brincadeira de criança.

terça-feira, junho 05, 2007

Sobre Recife, suas frutas e seus caranguejos com cérebro

De volta à Cidade Maravilhosa, ainda que em ritmo lento. Minha apresentação no congresso da Sociedade Brasileira de Sociologia foi bastante proveitosa, pelo que pude perceber das perguntas que foram endereçadas a mim. Infelizmente, ainda há muita gente com a crença de que a apropriação da cultura popular pela classe média é sinônimo de integração social.


Lembrei que escrevi um texto, logo que criei este blog, com alguns apontamentos sobre as semelhanças entre o funk e o samba. Pra quem não leu, vale dar uma conferida no texto, aqui.



E Recife é, de fato, minha segunda cidade. Nessa viagem, a terceira que fiz este ano, o que me chamou a atenção foi a diversidade das frutas vendidas nos sinais de trânsito. Sapotis, morangos, mangabas, frutas do conde, umbus, pitombas e muitas outras promovem um festival gastronômico de cores e sabores, que não se restringe às frutas e avança orgiasticamente por toda a culinária, nos arrumadinhos e nas galinhas à cabidela, no cuscuz e no mungunzá, bem como nos diversos tipos de caranguejo, típico animal local que foi amplamente utilizado pelos idealizadores do movimento Mangue - os "caranguejos com cérebro".



Esta analogia entre homens e caranguejos já havia sido feita em profundidade pelo médico pernambucano Josué de Castro, há mais de quarenta anos atrás. No romance Homens e Caranguejos, publicado em 1966, o autor revela ter cedo se dado conta de um “estranho mimetismo: os homens se assemelhando em tudo aos caranguejos. Arrastando-se, acachapando-se como caranguejos para poderem sobreviver. Parados como os caranguejos na beira da água, ou caminhando para trás como caminham os caranguejos”.


A partir desta percepção, Josué complexifica sua analogia e escreve um belo parágrafo sobre esse "estranho mimetismo", que cito abaixo:


"Os mangues do Recife são o paraíso do caranguejo. Se a terra foi feita para o homem com tudo para servi-lo, o mangue foi feito essencialmente para o caranguejo. Tudo aí é, ou está para ser caranguejo, inclusive a lama e o homem que vive nela. A lama misturada com urina, excremento e outros resíduos que a maré traz, quando ainda não é caranguejo vai ser. O caranguejo nasce nela, vive dela, cresce comendo lama, engordando com as porcarias dela, fabricando com a lama a carninha branca de suas patas e a geléia esverdeada de suas vísceras pegajosas. Por outro lado, o povo daí vive de pegar caranguejo, chupar-lhe as patas, comer e lamber seus cascos até que fiquem limpos como um copo e com sua carne feita de lama fazer a carne do seu corpo e a do corpo de seus filhos. São duzentos mil indivíduos, duzentos mil cidadãos feitos de carne de caranguejos. O que o organismo rejeita volta como um detrito para a lama do mangue para virar caranguejo outra vez".



Concluo, portanto, que não é difícil concordar com os versos de Chico Science:


Ô Josué, nunca vi tamanha desgraça!
Quanto mais miséria tem, mais urubu ameaça.